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Foto do escritorLuís Peazê

Mundo Guarani e a borboleta que roubou meu coração.


O nome dela é …, outro, mas poderia ser borboleta, minha borboleta. Amarelinha de asas transparentes vistas contra o sol, de perto cheias de pintinhas coloridas, guache, uma chuva de verão ou de uma tarde quentinha de um outono preguiçoso. Ela insiste em fugir das minhas mãos, brinca, e retorna impertinente mas sempre me comove pela delicadeza. Finge pousar ou fugir, seu jeito de pedir atenção. É isso, prefiro acreditar que pertenço ao Mundo Guarani como alguém que se apaixonou por uma borboleta de asas amarelinhas transparentes.


Enquanto estou mergulhado na história de um certo punhal de pedra que pertencera a um índio Guarani visto pela última vez na entrada de uma caverna paleolítica da região “rio bonito e veloz”, que em Guarani Mbya seria dito Camaquã, me cai nas mãos este outro livro feito “chuva encantada no meu coração de menino”. Acabei de plagiar uma frase desta chuva, digo, do Mundo Guarani da premiada acadêmica de Mato Grosso do Sul, Raquel Naveira, que em crônica de estilo próprio revela “fragmentos de uma alma da fronteira”, o subtítulo.


Vivemos num mundo superficial como nunca, não há dúvida, residimos com todo o peso de nossa existência numa densidade nunca experimentada, semovente e multifacetada, atolados numa massa crítica de caos. Se fosse no meu tempo de Assembler e Fortran poderia perguntar ao Mandelblot qual seria a figura caótica digital vigente, qual seria o padrão, não o enxergo caro Benoit, por mais que defenda a minha teoria do fractal negativo-positivo, esta sim gostaria de discuti-la contigo. Dúvida à parte, nunca foi tão oportuno nos enterrarmos no passado, em nossas heranças existenciais, conhecermos onde e quem foi que errou para chegarmos aqui, assim, deste jeito ao presente, já que não sabemos nem sonhar uma versão do futuro.


Os índios guaranis queriam encontrar a terra sem mal, para eles sem guerra, sem fome, sem doenças. Os índios guaranis davam mais importância à natureza como um todo em profusão do que a cada animal, eles e os bichos, inclusos os sons e aromas. Em outras palavras, aceitavam o caos de Mandelblot, o entendiam. Nós, civilizados por padrões inventados na matemática exata, hierárquica, desenhada ardilosamente pela lógica da dívida, que deu origem às moedas de troca, o sal obsceno cobiçado, aqui estamos.


Aí a Raquel Naveira desarmada entra no mato da fronteira com o Paraguai, no Mato Grosso do Sul, caminha por entre nacos de reboliços político-militares datados de antes e durante a sua infância, e nos mostra na densidade da alma guarani, a partir de mulheres guaranis que conheceu na sua pré-menarca, o cálculo é meu com o devido perdão por qualquer erro aritmético. Toca na alma de nós todos. A língua. Deveríamos dar mais valor à língua. E à língua de nossa alma. 


Mestre em Letras e com um curriculum de nos fazer suspirar, ela aborda com a suavidade que a intenção do livro sugere, a origem da língua guarani. Relata não acidentalmente mas antes de tudo dentro de um contexto que nos surpreende um exercício com alunos seus na faculdade. Mas é rigorosa com os sintagmas, e o tempo para respirarmos, usa vírgulas como talvez os sinais que os guaranis costumavam deixar nas árvores. Pontuo isto para não assustar os mais preguiçosos. A leitura flui e sem percebermos atravessamos o rio.


É esperado que se tenha gosto, a nostagia com o sabor daquele doce da infância, pelo lugar onde nascemos, crescemos e tivemos as melhores experiências na construção de nosso congnitivo. Mas quando se tem lembranças de infância num Mato Grosso do Sul, com o pantanal que só por isso já bastaria, feito a própria erupção do Aquífero Guarani, entre os quatro maiores do mundo, bifurcação de lendas, romances do imaginário de um Manuel de Barros, guerras transfronteiriças pela hegemonia de um continente precoce cobiçado pelos demais, povoado por atrocidades convivendo com riquezas interculturais; negros, índios, gaudérios e senhores de si estrangeiros decadentes; esta efervescência num mundo verde, terroso e líquido infinitamente longe do mar; quando se tem memórias tais de ouvido, do tio, da tia, da índia e da prateleira erudita de estudo linguístico acadêmico apaixonado pelos enredos da história interminável que nos une a tudo no universo, se esta ebulição é ejetada por veias da crônica de uma professora apaixonada, temos o Mundo Guarani. Um convite para que conheçamos mais deste mundo. E Raquel nos deixa curioso, eu fiquei. Ela faz viagens em estradas de ferro antigas, ela ouve músicas espanholas com pedigree, relê cartas e clássicos…    


Pessoalmente gostei do sabor de mel: “Panambi. O casulo guarda um terno segredo: o da vida que se transforma. Um dia, sob o sol de primavera, ele explode no êxtase de uma borboleta. São graciosas e ligeiras as borboletas. Um prodígio as suas asas, misto de flor e fimbrias. Os seus corpos, misto de lava e líquidos. (…) mel em lama, caudal de pétalas…” É rica a narrativa de Raquel tanto quanto é rica a imagem que ela transmite de sua paixão desde menina pela origem das palavras.


Recomendo experimentar o Mundo Guarani como uma surpresa mnemônica, e agora só me resta deixar que este texto, como de hábito parido de um jato só, seja revisado pela minha borboleta encantada que roubou meu coração, Helga, aquele nome não dito no início.

 

RAQUEL NAVEIRA é escritora, membro da Academia das Ciências de Lisboa, professora universitária, crítica literária, Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo, autora de vários livros de poemas, ensaios, romance e infantojuvenis. Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras; à Academia Cristã de Letras de São Paulo; à Academia de Letras do Brasil, com sede em Brasília; à Academia de Ciências de Lisboa e ao PEN Clube do Brasil. MUNDO GUARANI ganhou o PRÊMIO JOÃO DO RIO da UNIÃO BRASILEIRA DE ESCRITORES (UBE/RJ).

 

 

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Helga
Helga
Jun 25

Te amo!❤️

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