Seu Joaquim, Manuel, João, Mario, Bruno, Adrião, Orlando, José, Pedro, Machado e, em número maior, Marias, muitas Marias porque em Portugal há mais mulheres do que homens, por toda a parte, advogando, tratando doentes, ao telefone, preenchendo fichas de utentes, em caixas de supermercados, enquanto os rios portugueses, veias abertas da Europa que desaguam no Atlântico, sobem e descem, nas marés da história. E esta história que segue é sobre as notícias que me batem à porta, me acordam à beira do Tejo, e elas vêm a bordo de varinos. Somente mesmo em Portugal, touradas e barcos, num mesmo espaço neste início de julho.
O repórter está ancorado, feito um touro que cansou de golpear o toureiro, fugindo do combate, cético, não acredita que aquele gajo decorado a “dapper hair & beard style” seja mesmo viril, provocando este mesmo touro que sente saudades dos Coletes Encarnados do passado. E aquela platéia, reflete o mesmo touro, estaria de facto satisfeita? Seriam os gritos de espanto ou do quê mesmo? O repórter, como o touro, calmamente rumina lembranças e sonhos, quando as notícias lhe assaltam por todos os lados e dos sonhos lhe saltam personagens de carne e osso, madeira nobre, embarcações tradicionais que remontam às invasões fracesas fracassadas na Lusitânia, ao longo do Tejo.
Enquanto Seu Joaquim e Bruno, da Marina de Vila Franca de Xira, orientam os arrais que chegam a pinga gotas, João conta que “aquela canoa ali foi construída em 1918, é do Manuel, seu pai foi da Marinha do Tejo”; João fala com o encantamento de um anfitrião, “a Marinha do Tejo era formada por fragateiros ribeirinhos, jogavam as velas na lama, à maré baixa, para iludir as tropas francesas”.
Tropas do General Messenas frustraram Napoleão, se desfacelaram minguando de fome, incluindo soldados desertores apaixonados por varinas vendedoras de peixe. Hollywood produziu inúmeros roteiros, escritores do século XIX se inspiraram nessas histórias românticas, e de crimes passionais em plena guerra.
No dia seguinte dezenas de barcos tradicionais chegariam para a festa dos Coletes Encarnados, a cidade toda enfeitada, tavernas, bares que abrigam tertúlias e paredes forradas com fotos em preto e branco de toureiros e fadistas famosos, inundam as ruas de pedras milenares com música flamenca e fados. E cheiro de sardinha assada. É também a estação das sardinhas, acredite, à venda nas calçadas e também gratuitamente ao público, na madrugada. Difícil acreditar que em Lisboa, a vinte minutos de comboio, um Pablo Vittar rebola travestido de barbie para milhares de fãs, turistas e imigrantes, em recinto fechado febrilmente incendiado por luzes estroboscópicas.
Ao abrir a gaiúta de seu veleiro, o repórter vê a cabresto no pontão, os primeiros varinos feito camelos que atravessaram o deserto. Tudo é varino nesta paisagem, não vale a pena categorizá-los, são coloridos, são nativos do Tejo, então não são outra coisa. A atmosfera denuncia a latência marítima no peito de cada português. Se transformam diante de um barco, ou melhor, se alinham espiritualmente, viram crianças. Machado, arrais do Liberdade, o museu vivo que transporta turistas, generosamente corrige as amarras de uma canoa, enquanto também chegam lanchas e veleiros de Lisboa. Desde as 08:00 pontualmente quando explodiram os fogos de artifício.
Já não é mais possível evitar a festa. Já não é mais provável que o Mario repetirá sua rotina diária, de dar comida aos patos selvagens que voaram para a margem sul, descampado, zona rural, abrigo desativado das últimas e mais ferrenhas praças de touros. Mario é irmão de Manuel Matos (in memoriam) ex-vice cônsul de Portugal na Inglaterra filho de varina e fragateiro; filhos de Vila Franca de Xira. É inevitável ignorar a notícia, o repórter está fadado a contar a história do início ao fim.
E dizer que tudo começou quando ainda não havia a arma de guerra com o uso da pólvora.
Cavaleiros dos exércitos eram treinados correndo atrás de touros, dando origem a um jogo, tal e qual o jogo com a cabeça dos inimigos vencidos deu origem ao que é hoje o frenezi que lota estádios de futebol, a ver miúdos de educação básica duvidosa receber milhões de euros em suas contas bancárias, a vender marcas de produtos de necessidade também duvidosa. Acefalizando gerações...
A história deste ano pára aqui: o auge das celebrações deve ser a homenagem à José Mimoso, o mais antigo campino desde tão cedo que ele mesmo diz que aos oito anos de idade já dormia na relva entre os bois, as vacas e as ovelhas. Dezenas de embarcações tradicionais do Tejo deslizam pelo Mar de Palha, entre a Ponte Vasco da Gama através dos mouchões e estreitos rio acima atéa Vila Franca de Xira. Toda gente a procura das celebrações santas, folclóricas, diversão, fuga talvez inconsciente da enxurrada de notícias falsas que flutuam nas redes sociais, da ameaça das novas moedas criptografadas, das geringonças políticas, dos acordos intermináveis sobre o meio ambiente para salvar o planeta em escritórios climatizados por energia de empresas privadas transnacionais. Embarcações que migram da grande Lisboa contrapondo-se ingenuamente às imigrações clandestinas através do Mediterrâneo, do Rio Grande, entre o México e América do Norte, entre a Ásia e a Austrália, de um lado para o outro onde é possível ao homem comum sonhar com um porto seguro. Sonho. Como na era dos Descobrimentos, quando Portugal inventou a conectividade, pelo mar. Bem antes de nascer o primeiro clique.
Ainda sintomático, aquele mesmo repórter relutante, retornara na noite anterior desde o “hub” tecnológico de Oeiras, um teatro de guerra de grandes marcas ditadoras do ambiente virtual.
Faz aquilo algum sentido aqui, agora, com o cheiro dos touros e cavalos, na poeira da terra espalhada nas avenidas principais de Vila Franca de Xira, e dentro d´água imaginando qual seria o sonho de uma Toutinegra-Real, o passarinho de cabeça preta, feito a touca dos fragateiros do Tejo?
Um pergunta em aberto e mil palavras concorrendo com qualquer imagem, e a memória para histórias no futuro, notícias desse rio mundo...
Fogos de artifício patrocinados pela Câmara de Vila Franca de Xira ao final das comemorações,à meia-noite de domingo, 07 de Julho, como reza a tradição.