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Luís Peazê

Faróis, no admirável mundo novo onde até quando dá certo é problema


PUBLICADO ORIGINARIAMENTE NO JORNAL DA ECONOMIA DO MAR, LISBOA

Permita-me, caro leitor, um proêmio, digo, exórdio, isto é, introito, como se eu falasse na época de Camões. Ei-lo: “…como todas as coisas têm fim, convém que tenham princípio, e como o de minha pretensão é manifestar a grandeza, fertilidade e outras grandes partes que tem o Brasil, do que os reis passados tanto se descuidaram, a el-rei nosso senhor convém, e ao bem do seu serviço, que lhe mostre, por estas lembranças, os grandes merecimentos deste seu Estado, as qualidades e estranhezas dele…” Me ocorreu plagiar o preâmbulo do “Tratado Descritivo do Brasil – Roteiro geral, com informações de toda a costa”, por Gabriel Souza Soares, um relatório para o Rei de Portugal, produzido em 1587, com espantosa riqueza de detalhes até hoje válidos, da fauna, flora e oceanográfico, precursor da caracterização da costa brasileira e suas condições de navegabilidade.

Gabriel Souza Soares morreu na Bahia (1591), em sua lápide o epitáfio: ”aqui jaz um pecador”. O autor, quase totalmente desconhecido por brasileiros, me veio à tona por ocasião de doar parte de meu modesto acervo marítimo à Marinha do Brasil. Soares foi um agricultor e empresário português que chegou ao Brasil no prelúdio do descobrimento (1565), após 17 anos pediu à Corte de Madri (então sede da União Ibérica) permissão para explorar o interior do Brasil a procura de ouro, diamantes e riquezas inesgotáveis (ainda serão em 2020, 50, 100). Como justificativa, e apoio logístico, produziu honestamente uma das obras mais completas sobre o torrão brasileiro desde o sopé dos Andes aos seus 8 quilômetros de litoral.

Esse filme passou à velocidade da luz, e o Brasil nem bem convalesceu-se da promiscuidade geo-política de que foi palco, em que ingleses, franceses, holandeses, espanhóis e portugueses (mais tarde etnias e nacionalidades de toda sorte, polacos, italianos, alemães e todos os nórdicos e asiáticos inclusos) se imiscuíram a partir do descobrimento por Dom João III, se vê hoje afogado num pout-pourri de block chain, meta data, clicks per view, web metrics, algoritmos para identificar comportamento e impulsos, só para citar algumas das novas forças que movem o mundinho atual e a maioria, a grande maioria dos indivíduos, não tem a menor ideia do que sejam essas novidades, como funcionam, como impactam as suas vidinhas, e se submetem as elas mesmo assim. Pior, no Brasil de hoje saqueiam-se uns aos outros, deles mesmos, sem nada estudar, cultivar, nesta terra urdida e maltratada, sucumbida para muitos, inesgotável e volúvel assim se me parece para a maioria, posto que dela consta que só se tira, nada se devolve tampouco repara.

Exceto algumas matizes da elite, que vivem em ilhas terrestres longe da turba, nas ruas da grande cidade se caminha aos esbarrões, cordialidade zero, uma multidão de 50.000 tons de cinza (Fifty Shades elevado à potência máxima) que valoriza uma estética duvidosa (corpo e vestuário), onde a propina contaminou o tecido social além da epiderme, sai pelos poros a ponto de você somente obter uma gentileza numa portaria, se oferecer um sorriso em troca (pode ser falsificado, tudo bem); os alimentos vendidos que vão para a panela são negligenciados (inclusive por funcionários, de supermercados a produtores); a infra estrutura, o sistema de saúde e ensino são uma enorme colcha de retalhos, vista da lua se parece com a lona de um circo dos horrores; os eletrônicos são lixo vendido às toneladas para a China e parte retorna como se fossem novos; ouro negro abunda, mas só “é nosso” no fundo do mar, uma vez explotado e explorado jorra em outra bandeira, “não é nosso”; as obras públicas nunca se concluem completamente, há sempre um canto inacabado e resíduo (dinheiro) de material a céu aberto feito uma efeméride (ferida aberta) permanente… Mesmo sendo bem otimista, no Brasil de hoje, “até quando algo dá certo é um problema”.

Contrariando o modus operandi vigente, no velho estilo índio e homem civilizado, ou beduíno e mantenedor de uma fonte de água no meio de um deserto qualquer, fui doar e ganhei um presente, fui levar algo esquecido, e recebi em troca a lembrança de algo que infere justamente isso, a bifurcação de mundos diferentes.

Marquei audiência com o Vice-Almirante José Carlos Mathias, diretor do Centro Cultural de Documentação da Marinha do Brasil, para doar uma coleção de Faróis do Brasil, construídos com as minhas próprias mãos em cerâmica queimada a 1000 graus centígrados, na escala 10/20, os 26 mais proeminentes exemplares, do mais antigo ao mais alto, do mais afastado do continente ao primeiro com luz elétrica e assim por diante. Coleção que me permitiu por dez anos (2006/2017) entreter variados públicos; de estudantes de escolas públicas a universitários, de ecologistas a profissionais marítimos, da náutica e turismo, contando a história da sinalização náutica e sua importância para a navegação e segurança no mar. Quanto mais apenas culturais são os faróis importantes hoje em dia, tanto mais ganham em importância as suas metáforas…

Coleção de Faróis do Brasil no atelier naval de Luís Peazê

Quem já navegou um litoral difícil, com precariedade de cartas náuticas, saberá avaliar o quanto é vital o auxílio de um farol para a localização estimada. Quem hoje em dia se ampara apenas num GPS eletrônico (ou Google), navega às cegas, sem a supra sensibilidade dos com deficiência visual.

Assim descrevia ao VA Mathias a minha experiência tacanha ao velejar na Austrália, quando recebi um exemplar de “Da Armada Real para a Marinha Imperial”, livro produzido a quatro mãos de um oficial da Marinha Portuguesa e um oficial da Marinha do Brasil; repertório das unidades e organismos que ficaram no Brasil e as que voltaram para Portugal, por CGM Rodrigues (Portugal) e CF Paulo Castro (Brasil), notável coletânea, fotos e registros de batalhas, episódios de confronto e marcos históricos envolvendo os dois países, as duas Marinhas; co-prefaciado pelo VA Mathias e pelo VA Augusto Mourão Ezequiel, Diretor da Comissão Cultural de Marinha (Portugal).

Inicia a contribuição do VA Ezequiel assim: “…o desenvolvimento do comércio marítimo, nomeadamente com o Brasil, onde se iniciara a exploração do ouro e dos diamantes, por um lado, e as ameaças cada vez mais agressivas por parte dos corsários e piratas berberes e franceses, por outro, levaram ao desenvolvimento da Armada Real (…)”; o VA Mathias por sua vez assinala, “…a história do Estado brasileiro está intrinsecamente vinculada com a extraordinária trajetória do reino da Península Ibérica que, voltado para a imensidão do mar desconhecido, liderou o rompimento das barreiras geográficas, econômicas, políticas e culturais da Europa no século XV e fundou um império transoceânico (…)”.

Para o leitor que conseguiu chegar até aqui e mesmo este, possivelmente sentindo o ressaibo de uma era tão ultrapassada que é difícil acreditar ter existido, convido a apenas um minuto a mais no passado, a título de comparar com os nossos dias atuais; nos tempos de Dom João III, mesmo tendo sido considerado o Rei que não sabia reinar, enfrentara talvez as mais duras décadas que Portugal já enfrentou: pirataria generalizada nos sete mares, onde Portugal aventurava-se pisar as botas, abdicação de colônias como Marrocos e Bombaim, testemunhou a morte de seus dez filhos, patrocinador da inquisição em Portugal e consequente expulsão voluntária de Judeus e Cristão-Novos, sucessivas crises econômicas internas, dadas aos altos custos para proteger as colônias em África e Brasil, Índia e China, crises políticas externas pela ascenção do vizinho Carlos V, rei de Espanha, a concorrência da França e do Império Otomano, em meio a isso a proliferação da peste e o grande terremoto de Lisboa, catástrofes agrícolas históricas, com tudo isso sendo um dos Reis mais jovens da época, aclamado ao trono com apenas 19 anos, apesar de dividir esse protagonismo juvenil com o rei de Espanha, 22 anos, da França, 28 e Inglaterra com 31, não era, contudo, Portugal nada mais nada menos do que uma das potências econômicas da Europa, incluindo seu estofo intelectual em pleno vigor da era de Camões, entre outros.

Atualmente, os portugueses reclamam que não se deve explorar o petróleo nas águas que banham o Algarve, que é pecado vender imóveis a estrangeiros, sentem-se menores porque não há indústria potente em solo português, choramingam pelo custo da previdência que sufoca o país e por aí Chiado afora. Uma choradeira torrencial, embora, no conjunto de fatores positivos e negativos, a morada de Portugal continue sendo o lugar geodésico do globo terrestre mais privilegiado do mundo, e relativamente com o maior território marinho do planeta.

Essa divagação, todavia, me ocorreu por conta de doar à Marinha do Brasil junto com a coleção de Faróis, a máquina de datilografia Royal que pertenceu ao Almirante Paulo Moreira, considerado pai da oceanografia no Brasil. Nela, Paulo Moreira, militar diferenciado na época por ser intelectual, além de redigir seus relatórios como emissário brasileiro às convenções da ONU que tratavam dos primórdios (décadas de 50, 60 e 70) do Direito Marítimo internacional que desfrutamos hoje, e trabalhos científicos de que foi autor e inovador (identificação das zonas de ressurgência no Brasil e importância do estudo e fomento da pesca e seus vetores produtivos, e cartografia, entre outras áreas da oceanografia), encontrava tempo para traduzir autores estrangeiros tais como, Aldous Huxley, O Admirável Mundo Novo. A máquina Royal, relíquia histórica, foi acabar em minhas mãos, cedida por seu filho enquanto eu pesquisava para produzir a biografia do Almirante Paulo Moreira, trabalho imensamente gratificante que pude desenvolver e descobrir curiosidades sobre Paulo Moreira, muitas para citar aqui, como o fato dele nomear “estações oceanográficas” com o nome de algumas amigas, uma delas a famosa atriz e posteriormente diplomata americana, Shirley Temple, a primeira criança a tornar-se celebridade na TV americana e em Hollywood. O Almirante Paulo Moreira, contudo, ficou conhecido mesmo por suas descobertas e paixão pelas coisas do mar, talvez a mais emblemática tenha sido a da “Guerra da Lagosta” entre Brasil e França.

Transcrição (parcial) de depoimento do Almirante Paulo Moreira ao Museu da Imagem e do Som.

Foi um imbróglio entre os dois países em que não houve um só tiro de canhão, alguns navios chegaram a se movimentar nos respectivos litorais prevendo algum barulho, mas o ruído maior ocorreu numa reunião no âmbito das Nações Unidas em que os franceses argumentaram não ser legal a Marinha Brasileira reprimir pescadores franceses em águas próximas ao Brasil, posto que eles pescavam lagostas, que, segundo os franceses, tratava-se de um peixe que pulava, migrando de um limite marítimo ao outro inapelavelmente. A coisa foi um pouco mais complexa que isso, mas o Almirante Paulo Moreira derrubou o raciocínio fraco dos franceses, vencendo a discussão, com a seguinte frase: “ora, se lagosta é peixe, então canguru é passarinho”. Foi exatamente neste episódio que saiu na imprensa francesa, uma frase atribuída equivocadamente a Charles De Gaulle, que “o Brasil não é um país sério”.

Passado um século do nascimento de Paulo Moreira (1919), o “patropi” continua nada sério, no sentido honroso, e piorou, porque além disso perdeu a alegria que o movimento modernista tornou uma “Brazilian branding”. A marca brasileira hoje vem com uma tarja preta na embalagem, e até em elevadores: “cuidado, este sorriso pode estar enganando você”.

Post Script: enquanto coloco ponto final no texto acima, passa no horizonte através de minha janela, deslocando-se Baía da Guanabara adentro, o maior navio da esquadra brasileira, PHMA-140 Atlântico (ex-Ocean), 203 metros, 22 mil toneladas, um porta helicóptero de 20 anos de idade, adquirido da Inglaterra este mês, por 84,6 milhões de libras. Em 2017, o único porta-aviões brasileiro foi desativado, após uma sequência de acidentes de explosão de tubulações resultando em danos humanos. Resta agora ao Estado brasileiro prover um sistema de monitoramento da costa, incluindo todo o aparato operacional necessário (humano e material), para que o porta helicóptero Atlântico seja de fato útil. Enquanto isso, ilicitudes tais como descartes de águas de lastro (da marinha mercante), vazamento de óleo de embarcações e lavagem de cargueiros antes das 50 milhas permitidas para tal continuam ocorrendo, assim como o tráfico ilegal de armas, drogas, gente (de bebês a prostitutas) e contrabando de mercadorias. A Marinha Brasileira não tem a função de polícia marítima para eventuais ocorrências, seriam assuntos da Polícia Federal, que por sua vez não possui recursos operacionais e humanos para ações no mar, e, por fim, o Brasil não dispõe de Guarda Costeira. Assim como o serviço de previsão meteorológica da Marinha funciona numa bolha militar/acadêmica, e os aeroportos não dispõe deste serviço (simplesmente fecham quando há neblina), mas isto é outra história…

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